top of page
  • Foto do escritorLívia Santana Carvalho

Coração valente: famílias que adotam crianças fora do padrão brasileiro

Atualizado: 1 de fev. de 2021

Por Amanda Albero, Giovanna Dias, Giulia Futema, Isabella Fonte, Lívia Carvalho e Maria Júlia Miranda, alunas do 1º JOD



Coração valente: famílias que adotam crianças fora do padrão brasileiro | Foto: Pixabay


Domingo, 9 de setembro de 2018. Pelo Campeonato Brasileiro, mais um clássico entre Palmeiras e Corinthians. As emoções dentro das quatro linhas são muitas, mas um detalhe na arquibancada chama a atenção: a palmeirense Silvia Grecco narra a partida para seu filho Nickollas, de 11 anos, que é deficiente visual. O primeiro a perceber a cena é o repórter Marco Aurélio Souza, da TV Globo, que comenta o que acontece com o narrador da emissora, emocionando quem acompanhava a transmissão. Na semana seguinte, então, a atitude de Silvia ganha repercussão e a história do menino é contada pelo programa Globo Esporte.


A trajetória de Nickollas é ainda mais emocionante do que muitos imaginam. Ele nasceu com apenas cinco meses de gestação e a prematuridade impediu a formação de suas retinas. Só depois de quatro meses internado no hospital ele conheceu Silvia, que estava atrás de doze casais na fila de adoção. Nickollas já foi uma das mais de cinco mil crianças que ainda aguardam por uma família no Brasil, segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).


Implantado nacionalmente em 12 de outubro de 2019 e regulamentado pela Resolução nº 289/2019, o SNA é uma iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Monitorado pelo Comitê Gestor dos Cadastros Nacionais (CGCN), o sistema nasceu a partir da união do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) e do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), com o objetivo de sistematizar as informações sobre infância e juventude referentes ao acolhimento e à adoção.


Ao encontrar uma mulher grávida ou até mesmo a fotografia da gravidez da mãe, a curiosidade da criança é aflorada. A pergunta “de onde vêm os bebês?” ainda pode ser respondida com a chegada da cegonha ou com a sementinha que o papai do céu plantou na barriga da mamãe. Porém, quando a mesma é adotada, a pergunta ganha uma outra dimensão. Por volta dos sete anos de idade, as dúvidas começam a aparecer, enquanto as respostas são compreendidas através de histórias que sempre são repetidas. Mas, se diferentes versões são apresentadas, principalmente pela falta de relatos passados e por não saber como abordar, a desconfiança por parte dela levará um dia à indagação: “Como foi que você me encontrou?”. A partir desse questionamento, em julho de 2013, nasceu o Conta de Novo, autodenominado “projeto cristão de apoio e orientação à adoção”.


A assistente social, especialista em terapia familiar e teóloga Maria José Correa é a coordenadora do projeto, localizado no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, que realiza palestras mensais, aos sábados de manhã, para preparar os pretendentes do processo adotivo legal indicados pelo Tribunal de Justiça. Com páginas no Instagram e Facebook e canal no YouTube, devido à pandemia do coronavírus, as atividades presenciais foram adaptadas ao formato de lives desde agosto.


Maria José Correa durante a primeira palestra do projeto Conta de Novo, em 20 de julho de 2013. | Foto: Reprodução/ Facebook Conta de Novo


Apesar de o projeto não se dirigir especificamente à adoção de crianças fora do padrão, as palestras visam a abordar questões relacionadas à etnia, adoções de irmãos e tardia e aos diferentes níveis de desenvolvimento humano, porque as desigualdades sociais e raciais ainda refletem durante o processo, sendo um problema que precisa de visibilidade.

Meninas brancas de até três anos. Para se traçar esse perfil, há a observação de influências multifatoriais que acarretam essa escolha. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a região Sul do Brasil conta com o maior número de crianças e adolescentes adotados (38%), enquanto a região Sudeste concentra o maior percentual de processos de adoção (49%). Consequentemente, a predominância da população branca nessas regiões leva a uma tentativa de repetição do perfil étnico dos pretendentes, sendo que a etnia parda corresponde a quase metade (46%) dos indivíduos em situação de vulnerabilidade que aguardam por uma família.


Vivido por grande parte dos casais, o luto da infertilidade ainda é uma das principais razões pelas quais se busca a adoção. A impossibilidade de gerar um filho biologicamente transfere o desejo da maternidade para uma criança pequena, porque, além da facilidade de formação de vínculos e adaptação, quanto menor for a faixa etária menos lembranças da família anterior e questionamentos existirão. “Adoção não é um caminho fácil; a reprodução biológica já não é”, lembra Maria José.


O Conta de Novo não tem a intenção de resolver a questão dos casais que não podem ter filhos biológicos. “Estamos falando de pessoas que precisam de família, porque a gente aprende a amar, a socializar, a gente cria a nossa identidade à família”, afirma a coordenadora do projeto. Assim, é importante adotar e apoiar a causa, desde ações como as realizadas pelo Direito do Órfão até ser capaz de olhar criticamente para uma realidade problemática de “crianças e adolescentes invisíveis que crescem sem identidade”.

“Se a pessoa quer adotar uma criança, ela não pode fazer isso para um apoio assistencial. Ela tem que estar disposta a ser pai e mãe para toda a vida e para o que der e vier” — Maria José coordenadora do Conta de Novo.

Por outro lado, a afetividade estabelecida entre filho e família, desde o estágio de convivência, período definido pelo juiz para o acompanhamento e análise dos cuidados com o futuro adotado, até os laços construídos de uma relação de anos pode ser abalada por uma aflição: a devolução. Como explica a assistente social, muitos casos ocorrem na adolescência, principalmente por ser uma fase de grandes mudanças com a qual os casais, separados por consideráveis gerações de seus filhos, encontram dificuldades para lidar. Os questionamentos e curiosidades à flor da pele também refletem aquelas raízes do início: “Não se sabe como eles contaram a história do começo”.

“A adolescência é o período em que tudo vai para o ar. Tudo o que você pensava de certo, dentro de você, começa a ser questionado e você vai buscar uma outra alternativa, vai confrontar, enfim, vai tentar buscar a sua identidade como adulto.”

Pais e filhos: uma fila desigual

Enquanto cinco mil meninos e meninas esperam pela tão sonhada família, 42 mil pretendentes entram em uma longa e demorada fila de espera. Quando o assunto é adotar, a ansiedade é uma via de mão dupla. “Adoção não é a primeira alternativa e ela não se realiza rápido”, aponta Maria José. Com o período pandêmico, então, o processo tornou-se ainda mais complexo, sobretudo pela comunicação remota entre família, assistência social e psicólogos, com dificuldades devido à falta de expressões não verbais, do contato e das visitas ao lar.


Maria José também ressalta os efeitos que a carga emocional pode ter durante as etapas da adoção. Dentre os motivos pelos quais muitos responsáveis recebem a notícia de que ainda não estão preparados encontram-se, principalmente, as dificuldades em lidar com as próprias questões pessoais e até uma “frustração” pelo luto da infertilidade.



A espera sob um novo olhar


Em contrapartida ao perfil esperado por uma considerável parcela dos casais heteronormativos, os pretendentes de união homoafetiva estão mais dispostos a adotar irmãos e crianças de faixas etárias superiores aos três anos de idade, sendo um dos motivos, segundo Maria José, as dificuldades encontradas para os cuidados com um bebê.


Muitos pretendentes ainda identificam a raça, o sexo e a faixa etária desejados, excluindo a possibilidade de adoção de crianças e adolescentes com algum tipo de problema de saúde, por meio de observação empírica. No entanto, Maria José enfatiza que mulheres solteiras e casais que já tiveram experiências adotivas na família estão mais abertos a adotarem esses indivíduos, incluindo cidadãos das classes C e D. Mesmo que careçam de recursos em comparação com a maioria que adota e que define os perfis, como explica a assistente social, esses “estão mais abertos a viver o comunitário: contar com a família, contar com os vizinhos.”


Dados sobre crianças e adolescentes disponíveis para adoção por problema de saúde e região | Fonte: Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento/CNJ


No entanto, apesar de o conceito de família ser transformado e acompanhado conforme a época, até a Constituição de 1988 o mesmo limitava-se apenas às relações oriundas de matrimônio. Mas a Constituição Cidadã passou a abranger diversos modos de formação familiar, incluindo pessoas solteiras, porque prevalecem os laços afetivos, não as alianças de um casamento. Assim, há aproximadamente 17 anos, Vivian Abid tornava-se mãe de um casal a partir da adoção monoparental, uma realidade cada vez mais constante no Brasil.


Irmãos gêmeos, adotados aos 11 meses por uma mulher branca, Pablo Abid Castilho e Paloma Abid Castilho, de 18 anos, são dois adolescentes negros que falam abertamente sobre suas histórias e sobre o fato de serem jovens que, dentre milhares, passaram pelo processo de adoção. Por não terem cerimônia quando o assunto é mencionado, ou por falarem espontaneamente sobre ele, é perceptível o fruto de uma relação clara e aberta com a mãe quando diz respeito à adoção. Os dois souberam bem cedo que foram adotados, pois quando tinham apenas três anos de idade a mãe explicou tudo.

Pablo e Paloma aos quatro anos de idade. | Foto: Acervo pessoal


Paloma se lembra do dia em que a mãe contou a ela sobre ser filha adotiva. “Todo domingo minha mãe lavava meu cabelo, e como meu cabelo é crespo eu chorava para pentear. Aí, quando ela estava penteando, me falou. Eu lembro que eu chorei. Nós duas choramos.” Já Pablo se lembra de uma história que a mãe contou, dizendo que os dois vieram de outra mãe e com 11 meses ela os buscou. “Foi uma conversa muito tranquila, como se fosse uma história contada”, diz.


Para Pablo nada mudou e não houve confusão, não foi um choque, já que eles foram adotados bebês, e o processo de transição de família não aconteceu: “Eu estou vendo só uma mãe, eu convivo com só uma mãe. Por a minha mãe ter contado com três anos a gente foi vivendo com essa informação de forma muito tranquila, mas entendendo um pouquinho mais a cada ano”, completa.

Pablo e Paloma ao lado da mãe, Vivian Abid. | Foto: Acervo pessoal


Eles contam que a mãe, Vivian Abid, tinha a intenção de adotar apenas uma criança, mas quando entrou na lista de espera “tinha a gente e não pode adotar só um”. Segundo o 4º parágrafo do artigo 28 presente na lei Nº 12.010, de 3 de agosto de 2009,Os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais”. Então ela os adotou.


Sobre a família biológica, os irmãos contaram que a mãe faleceu no parto e o pai já havia falecido. Pablo e Paloma têm mais quatro irmãos biológicos que estão sob a responsabilidade dos avós. Quando os gêmeos nasceram, a decisão da família diante do agravamento da situação financeira foi entregá-los para a adoção. Questionados sobre a curiosidade de conhecer os avós biológicos, os dois disseram que a mãe já perguntou se gostariam, mas eles, mesmo achando a ideia legal, não demonstraram muito interesse.

Por terem sido adotados, a questão de adotar crianças futuramente foi abordada. Pablo diz pensar muito sobre o assunto e comenta ter uma grande vontade. Paloma afirma que sonha em ser mãe, mas que depende da pessoa com quem ela for se casar, “mas não tem problema nenhum, eu vou amar do mesmo jeito”.


Sobre o futuro, Paloma não pensa duas vezes para falar que deseja ser atriz, além disso quer viajar para Londres e para Valência, na Espanha, para conhecer os primos. Já Pablo, finalizando o último ano do Ensino Médio e da Escola Técnica, pretende cursar engenharia de produção e sonha participar de atividades sociais.


Outro casal que fugiu do padrão de adoção brasileiro foi Daniela e Marco Aurélio Pescarmona. Após cinco anos na fila de adoção, eles adotaram irmãos, com mais de dois anos e negros.


O sistema de adoção


Daniela e Marco casaram-se em 2006 e, desde então, tinham tentado engravidar. Descobriram, depois de diversas tentativas, que não conseguiriam gerar um filho e se depararam com duas opções: fertilização ou adoção. Em 2014 entraram com o pedido de adoção e descobriram a dura realidade do sistema brasileiro. “É muito estranho”, conta Daniela. “Parece que estamos escolhendo algum produto. Raça? Idade? Deficiência? Sexo? Como você vai querer?”

“É fato que o sistema é falho. Nos disseram que havia muito mais casais na fila da adoção do que crianças para serem adotadas, então por que demora tanto tempo? Enquanto analisam papelada a criança está lá, crescendo e desenvolvendo, querendo um lar. Pedem vários documentos, vários mesmo, inclusive pedem uma avaliação psicológica para garantir que temos condições de cuidar das crianças.”

Durante os cinco anos essa busca não foi fácil: a espera, a documentação, as visitas e mais. “Os pais biológicos já ficam ansiosos para conhecer seus filhos e eles só precisam esperar nove meses, nós esperamos cinco anos!”, explica Daniela. “As famílias já estão com as emoções afloradas e os fóruns dizem que a única coisa que podemos fazer é esperar. Não é tão fácil!”


A papelada

Como apresentado anteriormente pela assistente social Maria José, os pais têm acesso a grupos de apoio para encontrarem pessoas que passavam pela mesma situação e compartilhar experiências.


“Descobrimos na marra que esse ‘grupos de apoio’ na verdade são cursos com carga horária e quem não tivesse os certificados e presença não levava a adoção adiante. Não é como se o curso fosse uma experiência ruim, porque não é, mas não deveria ser obrigatório”, desabafa Daniela. “É complicado porque não tem curso que te ensine a ser pai. É como uma das psicólogas que nos acompanhou disse: ‘Vocês têm que colocar na papelada a idade que vocês querem porque é mais do que adotar, é ser pai e mãe e cuidar’.”


O casal mostra para as jornalistas a pilha de papéis da adoção que guardam no fundo da gaveta: certificados dos grupos de apoio, ficha de abertura de processo de adoção, listas de filmes e livros que retratam a adoção, certidão de nascimento das crianças e mais.


“Aliás, certidão de nascimento é outra questão”, começa Daniela. “Nós já entramos com o processo para colocar nosso sobrenome na certidão de nascimento deles, mas eles precisam estar há, pelo menos, dois anos com a gente. É exatamente isso que eu estou falando: até dois anos depois da adoção, alguém da família biológica ainda pode tirar a criança de você. Mas é complicado, né? A criança já se acostumou com você, com a rotina, com a família, e vem alguém, que não teve interesse nos anos em que ela passou nos abrigos, para afastá-la de você.”


Preconceito?

Por ter adotado crianças negras, o casal se preocupa com o possível preconceito que poderia sofrer. Daniela conta que a psicóloga que os acompanhou disse que o preconceito vem de dentro de nós, que devemos tratá-los como seres normais e ensiná-los que são lindos independentemente de qualquer coisa que lhes digam.


O casal Pescarmona junto aos seus dois filhos, Alisson e Laís. | Foto: Arquivo pessoal


“Eu vou criar eles mostrando o que pode acontecer, mas não os colocando como vítimas ou sendo preconceituosos com eles mesmos. Eu digo para eles que a mamãe queria ter a cor deles. Porque se fico no sol fico vermelha, eles 15 minutos no sol ficam uns ‘bombonzinhos’. Sempre demonstro o quão linda eu acho a pele deles!”, conta Daniela.

O casal conta que, por serem brancos, às vezes recebem comentários elogiando a atitude da adoção de crianças negras. Eles contaram, também, que ficam felizes de não terem recebido nenhum comentário negativo em relação às crianças. “Eles são meus filhos, só que nasceram em outra barriga, como uma barriga de aluguel. A Laís tem o formato do nariz ‘coxinha’ como o meu, rosto gordinho, troncudinha. Já o Alisson é magro, comprido, como o Marco”, declara ela.

As crianças

Alisson e Laís foram para o lar da família Pescarmona em agosto de 2019, quando tinham três anos e cinco meses e dois anos, respectivamente. “A Lalá [apelido dado a Laís] não lembra de nada do tempo que passou no abrigo. O Alisson tem alguns flashes, mas dizemos que foi apenas um sonho ruim”, relata Daniela.

Apesar de não se lembrarem do abrigo em si, o casal conta que eles vieram de outra mãe, coisa que não diminuiu o amor entre eles nem impediu as crianças de chamá-los de pai e mãe. “Nós sempre fomos muito honestos com eles. Desde quando chegaram contamos para eles que são nossos filhos, mas não caberiam na minha barriga”, conta Daniela. “Então eles nasceram de outra barriga, mas são nossos.”

“Às vezes eles questionavam por que não estavam em determinadas fotos ou por que não lembravam de alguma situação. Ao longo desse tempo que eles estão conosco tiramos fotos de nós quatro e fotos deles com os amigos e família. Eles têm o quartinho deles aqui em casa decorado com as fotinhos deles, e têm o espaço deles guardado no nosso coração. Nunca sentimos um amor assim.”

Após um ano juntos, as crianças já têm muitas amizades: colegas de classe e primos, além dos outros membros da família. “É muito lindo ver eles crescendo, criando laços e descobrindo a vida. É emocionante”, finaliza Daniela.


 

Outra situação de adoção fora do padrão é a história do casal Shirley, 38 anos, e Júlio Silva, 42, pais do Kauê, hoje com oito anos de idade.



A família na Fortaleza de Itaipu, localizada na Praia Grande, durante a última viagem antes da pandemia do coronavírus. | Foto: Arquivo pessoal


Casaram-se em 2003, porém começaram a pensar em gravidez em 2006, quando Shirley terminou a faculdade. Durante dois anos eles ficaram na chamada “fase de treinantes”, ou seja, período de tentativas de engravidar. Ao longo desses 24 meses, Shirley passou com seis ginecologistas que prescreveram medicamentos e métodos, podendo citar ácido cólico e namoro programado (onde o casal tem relações sexuais no momento da ovulação).


Depois de dois anos e cinco profissionais, Shirley descobriu que tinha endometriose e fez a videolaparoscopia — uma limpeza do útero. Após o procedimento, houve uma coleta de cinco embriões, estimando que dois viriam a vingar, e os outros três foram congelados para serem usados em tentativas futuras. A fertilização, infelizmente, não vingou — resultado que teve influência da incompatibilidade sanguínea do casal.


Depois dessa primeira tentativa, Júlio questionou: “Por que não adotar?”. Shirley sempre teve essa intenção, mas queria muito ter um filho biológico. Depois de muita conversa, decidiram entrar com o processo de adoção, pois já tinham em mente o quão demorado seria.


Decisão tomada, foram até o Fórum de Santo Amaro, que era perto do trabalho de Shirley, para buscar a relação de documentos necessários, como atestado criminal e atestado físico. Tanto ela quanto Júlio fizeram uma carta contando a história de cada um nesse período.


Ao longo do processo fizeram o curso de adoção, no qual se comoveram bastante e perceberam que muitas crianças são devolvidas através do convívio, porque os jovens desafiam os pais. Durante um ano, fizeram parte do projeto Acolher, organizado em uma escola pública localizada no Jardim Sabará. Nas reuniões realizadas aos sábados, os casais de adotantes apresentavam-se uns aos outros, criando uma grande rede de apoio. Além disso, receberam uma senha, participaram pelo site e conseguiram acompanhar todo o andamento e a colocação na fila de adoção.


O processo foi extenso: uma entrevista com psicóloga e outra com assistente social, além do envio de todos os documentos necessários para, aí então, o juiz decidir se estariam habilitados ou não para adotar. Foram três meses de espera pela resposta, até que, em dezembro de 2011, o casal estava oficialmente na fila de espera, onde permaneceu por dezoito meses.


O início do processo de adoção é repleto de papéis. Um dos primeiros é, justamente, a escolha de como vai ser a criança. Quais serão os critérios? “A psicóloga traz um formulário com as nossas opções: raça, sexo, idade e mais. São mais de cem perguntas!”, conta Shirley. Enquanto ela sempre quis um garotinho, pois achava mais prático, Júlio queria uma garotinha; então, deixaram o campo em aberto. “São perguntas bem específicas, te oferecem opções em todas as características físicas, desde textura do cabelo até deficiências físicas.”

“Além de todas as perguntas sobre a criança, ainda tem perguntas sobre o histórico familiar, então se seriam aceitas crianças com pais que eram usuários de drogas etc. Nós fomos bem abertos sobre as categorias, desde as características físicas, familiares e até mesmo locais de origem (que restringimos a São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais). A única coisa que restringimos foi a idade: queríamos uma criança bem novinha, mas não recém-nascida, até no máximo um ano e seis meses.”

Já na fila da adoção, o casal decide, pela última vez, tentar a fertilização — que, infelizmente, não vingou. Apesar de não ter dado certo, foi libertador, pois também não era barato manter os óvulos congelados.

A ligação

Em maio de 2013, Shirley foi transferida da empresa em que trabalhava em São Paulo para Belo Horizonte. Como o tempo de espera na fila era grande, o casal não encontrou motivos que o impedissem de continuar a vida em outro estado. Júlio, então, decide pedir demissão para acompanhar a esposa em sua nova jornada pela capital mineira. Na volta para São Paulo, Shirley chega ao aeroporto de Congonhas. Ao pegar o celular para avisar ao marido que havia chegado, toca um número anunciando-se como Fórum de Santo Amaro. Ao atender, recebe a notícia de que havia uma criança com o perfil estipulado para a adoção. Explicaram que tentaram entrar em contato com ela no começo de maio, mas, por não ter atendido antes, a criança já havia sido adotada. Apesar da péssima notícia, disseram que havia um menino dentro do perfil estipulado pelo casal. E, assim, marcaram a reunião no fórum pós-feriado, em uma terça-feira. O caminho de Congonhas até sua casa nunca demorou tanto. Conversando bastante sobre o assunto naquela semana, o casal chegou à conclusão de que não iria mais voltar para Belo Horizonte, já que seria obrigatório o acompanhamento do Fórum durante um ano para poderem adotar a criança.


Shirley ligou para seu chefe relatando a situação e, sem mais nem menos, ouviu dele palavras não muito calorosas: “Se você não voltar para Belo Horizonte, você sabe o que vai acontecer!’’. E foi o que aconteceu. Na terça-feira, às nove da manhã, Shirley chega à empresa e assina o exame de demissão. Logo após, em prantos, chega ao fórum desolada pela situação de desemprego em que o casal passa a se encontrar.


Entretanto, as palavras de consolo da psicóloga e a emoção ao ver a imagem da criança dentro da pasta em que constava todo o histórico foram motivos suficientes para que Shirley pudesse sorrir novamente. Quando viu o relatório, a questão racial foi logo levantada pela assistente social: “Eu vi a foto, e fitei no que ela falou. ‘Tem a cor negra: tudo bem?’ E respondi, ‘tudo bem! Não tem problema nenhum! A minha família tem cor negra!’ , conta Shirley.


O histórico constava que a mãe biológica do menino assinou o documento de adoção ainda no hospital, e, assim, o levaram diretamente para o abrigo. Com os cuidados que a mãe teve, realizando até mesmo o pré-natal, o juiz cogitou uma possível depressão pós-parto. Portanto, solicitou uma investigação da família inteira para comprovar o abandono. A criança ficou um ano no abrigo até liberarem toda a papelada, e na semana do seu primeiro ano de vida o casal pôde conhecê-lo.


Conhecendo o Kauê


No outro dia, quarta-feira, às nove da manhã, chegaram ao abrigo. “Parecia uma escolinha”, diz Shirley. Assim que entraram, os responsáveis pelo local tiveram o cuidado de recolher as outras crianças, para que fosse possível conhecer somente aquela que foi tipificada para a adoção. Trouxeram o Kauê ainda bebê. Era chamado pelo apelido “Tutu”, pois não tinha o nome definido. Por esse motivo, a psicóloga permitiu a mudança do nome.

Nesse processo, tiveram apenas sete dias para tirá-lo do abrigo. Isso ocorreu em maio de 2013 e a papelada com a adoção provisória saiu apenas no dia 13 de junho. Antes disso, o casal foi diariamente ao abrigo para interagir com o Kauê. Brincavam, davam almoço, café da manhã, registravam momentos… mas as incertezas ainda assombravam o casal. “Estávamos desempregados, onde eu morava não havia proteção na janela, nas escadas… não tínhamos roupas para o Kauê, não tínhamos berço, nada! Porque pensávamos que iria demorar muito. Todo dia íamos visitá-lo e, quando eu voltava, ia atrás das coisas, recebia muitas doações…”, afirma Shirley.


“No sétimo dia tinha que ir lá buscar ele. Aí nós fomos. […] Eu, mãe de primeira viagem, não tinha noção de nada. […] Chegou lá na frente do abrigo, a gente não sabia colocar o bebê conforto, a gente ficou trinta minutos do lado de fora […] a gente nem lembrava que tinha câmera, e eles ficaram vendo a gente lá de dentro.” Depois de terem conseguido colocar o bebê conforto, tocaram a campainha do abrigo e uma moça os recebeu aos risos. “Aí a gente recebeu a malinha dele do abrigo, com tudo que ele ganhou de pessoas que iam visitar o abrigo. O que ele ganhou de aniversário, os brinquedos dele.”


“Eles têm um cuidado e cada criança ali do abrigo tem uma agenda, quantas vezes foi para o hospital, se comeu ou não, como um relatório da criança. Achei isso fantástico”, comentou Shirley. Depois disso, ela e Júlio receberam um informativo com todos os horários de Kauê, como das refeições, de dormir e de tomar remédios. “Quando a gente o adotou, ele tomava treze medicações porque tem refluxo e bronquite. Quando a psicóloga falou pra gente ‘olha, ele tem refluxo e bronquite, tudo bem pra vocês?’, a gente ria, porque o meu marido tem refluxo e bronquite e os dois tomam a mesma medicação.” Depois de um ano, Kauê não precisou mais de medicações. “A medicação era o amor”, comentou Shirley.


O primeiro dia com o Kauê

Shirley relembra as primeiras dificuldades com o filho. Logo no primeiro dia com Kauê, o desafio foi comprar o primeiro pacote de fraldas e tentar descobrir qual tamanho ele usava. “A gente entrou no mercado e tinha uma moça na seção de fraldas, então a gente perguntou pra ela qual número de fralda ele usa”, lembrou. “A moça até me deu aula de fralda.”


A expectativa da chegada em casa com o filho dividia espaço com o medo da reação dos familiares. “A adoção é uma escolha dos pais, mas e da família?”. A situação, no entanto, foi diferente do que se imaginava. “Ele foi muito bem acolhido, houve todo um cuidado muito especial com ele, graças a Deus. O chá de bebê foi com ele, a gente apresentou ele pra família toda. Ele é neto, ele é filho, ele é sobrinho, ele é da família.”


O casal Shirley e Júlio ao lado de Kauê, durante o chá de bebê onde apresentaram o filho para a família e os amigos, em 2013. | Foto: Arquivo pessoal


A chegada de Kauê mudou não só a vida pessoal, mas também a profissão de Shirley. “Eu aprendi muito com ele. Eu entrei pro mundo da terapia pra tentar ajudar ele. Depois veio a psicanálise na minha vida para entender esse trauma, esse bloqueio, e no que eu posso ajudar. Hoje eu sou psicanalista e ele adora esse mundo.”


Shirley conta que atende muitas pessoas com receio de adotar alguém, principalmente porque pensam que a genética dos pais biológicos pode ser um problema para a criança no futuro. “A gente tem o gene? Sim, mas o ambiente prevalece. O ambiente faz toda a mudança”, ressalta Shirley, sobre a importância do modo como a criança é criada.


Relembrou quando, inconscientemente, teve ciúme do filho interagindo com outra mulher na fila do supermercado. “Hoje eu entendo isso (o ciúme), na época eu não entendia. Eu o peguei e ele começou a chorar, pensei ‘ah, ele não me ama’. Hoje eu entendo o que de fato aconteceu.”


A história de Shirley, Julio e Kauê ficou registrada. A primeira visita ao abrigo, o primeiro dia em casa com a família e as primeiras festas estão marcadas em um álbum de fotos. “Ele conta a história dele”, comentou Shirley.

Shirley participa de grupos que têm o objetivo de falar sobre adoção, mas confessa que atualmente tem pouco tempo para se dedicar a isso. “Eu gosto de falar disso, pra mim é tudo muito leve.” Shirley brinca e diz: “Participar do grupo hoje ficou um pouco mais corrido, ele (o Kauê) me preencheu.”


Shirley diz que Júlio pretende adotar mais uma criança, mas ela alerta: “Hoje eu tenho um pouco de receio. Eu não dou meu 100% para o Kauê, porque eu trabalho, eu estudo. Ainda estou passando por um momento de transição. Para ter outra criança, preciso saber respeitar meus próprios limites”.


Ela conta que deseja escrever um livro sobre adoção e psicanálise e pretende continuar com o blog. “Penso em continuar, em levar toda essa história pro mundo e mostrar que não é difícil, mas aí eu virei mãe e não sobrou tempo.”


Júlio, Shirley e Kauê |Foto: Arquivo pessoal


“Ele gosta de falar sobre tudo, gosta de uma boa conversa”, é assim que Shirley descreve Kauê, um menino que ama estudar matemática e filosofia e não tem vergonha de conversar sobre sua história. Ele diz que seus filósofos favoritos são Heráclito e Parmênides. “Eu gosto de estudar filosofia porque a gente aprende coisas novas e eu gosto de aprender sobre os filósofos”, comentou Kauê.

 

Clique aqui para conferir a matéria publicada!

4 visualizações0 comentário
bottom of page